segunda-feira, 22 de junho de 2009

Nos Açores o Fascismo Também Matou

MEMORIAL DA CORAGEM PROIBIDA

Em memória da nossa avó Maria dos Anjos,
falecida em Janeiro de 1974, aos 93 anos,
curtida pelo silêncio da sua íntima certeza
de que o seu filho primogénito jamais
pertencera à “quadrilha da mão-negra” ...


1 – rescaldo da ementa fascista micaelense

Deixou de ser doloroso admitir que na segunda metade da década de 30 do século XX, as elites micaelenses aderiram sem esforço ao novel fervor salazarenho que havia sido consagrado na pseudo-constituição de 1933. Para encurtar razões, irei circunscrever os meus dizeres às generalidades dos contornos da clássica maneira de ser micaelense, no quadro açoriano: durante a ocupação filipina da Coroa portuguesa, a hierarquia católica micaelense fez quase tudo para denegrir a influência anglicana que poderia resultar do apoio à causa defendida pelo martirizado prior do Crato; mais tarde, o aliciante alvoroço da revolução de 1640 levou meses a chegar à ilha do Arcanjo; duzentos e setenta anos depois, a auspiciosa novidade da implantação da república chegou já “fora d’horas” para aquecer (mesmo que em banho-maria) o indiferentismo micaelense; e o nosso (de)cantado “vinte-cinco d’Abril”, até hoje, não conseguiu atinar com o rumo certo para chegar à mesa das sopas do espirito santo da pobreza micaelense, apesar do maná salpicado da drogaria da moda...
Assumo publicamente a responsabilidade pela feitura deste inventário apressado das vicissitudes do sinuoso percurso do civismo micaelense. Quero continuar solidário com o sofrimento emocional daqueles que foram civicamente insultados ao verem a sua ilha usada como colónia penal no meio do atlântico-norte. Como no-lo diz a história, à ilha veio parar gente de elevado gabarite cívico, como o general Gomes da Costa, o coronel Barroso (pai da antiga primeira dama de Portugal), sem esquecer todos aqueles ilhéus que se sentiram “deportados” na própria terra… O estufeiro Carlos Tavares Ferreira, oriundo de Rosto-do-Cão, co-fundador da Casa do Povo de Fajã de Baixo e destemido anti-fascista, foi um deles.

2 – As vítimas, os carrascos e a indiferença da maioria silenciosa

Como era tradicional a juventude ter de “servir o rei”, em finais da década de 30 (século XX) Carlos Ferreira foi obrigado a “assentar praça” no exército português. Depois da recruta for promovido a cabo, e fez parte das praças então incumbidas de fazer sentinela aos locais onde muitos deportados politicos “jaziam” as suas penas conferidas sem o competente julgamento.
Com base no testemunho verbal dos velhos estufeiros da Fajã de Baixo (alguns, em 1975, estavam ainda muito lúcidos, em conversas amplamente testemunhadas pelo então veterano presidente daquela freguesia), Carlos Ferreira para além de estufeiro diligente e pontual, era mancebo destemido, exímio caçador de cordonizes, experiente “tratador” de cães.
Do relacionamento ocasional (embora subalterno) com alguns dos notáveis deportados que foram forçados a residir na ilha, resultou em que o jovem estufeiro depressa se desse conta das arbitrariedades cívicas cometidas pelo fascismo. Não obstante o grau elementar da sua preparação literária, teve a oportunidade de lidar com bons mestres e de beneficiar da convivência clandestina com livros raros para a época.
Acontece que em finais da década de 30, um dos mais sinistros agentes do fascismo em terra micaelense foi um tal tenente de infantaria, chamado Manuel Magro Romão, um dos lacaios típicos aliciados pelo delírio anti-democrático da moda: figura franzina, depressa arvorado em “napoleãozito de esquina”, a quem foi dado o comando da Policia Cívica de Ponta Delgada.
Gaguejam as crónicas da memória colectiva do tempo que, em dias de maus fígados, o intendente Romão divertia-se a passear a sua “autoridade” pela pacatez de Ponta Delgada; uma das tarefas patrióticas que lhe dava um gozo enorme era o ritual de esbofetear o munícipe distraído que ousasse caminhar no lado errado da via pública… em inocente desobediência à autoridade patusca das suas prepotentes posturas policiais.
Consta que de certa feita (porventura com a opinião já (in)formada pelos “bufos” da praça micaelense) o remendo de gente chamado Romão fez questão de interrogar, pessoalmente, o valoroso estufeiro Carlos Ferreira. Acontece que naquela época, Carlos Ferreira já era conhecido como criatura dita “perigosa”, fisicamente possante, com acesso gratuito a livros excomungados pelos príncipes da pureza ideológica decretada pelo salazarismo nascente. Ademais, por mais duma vez, havia sido surpreendido a “botar” palavra “anti-estado-novo” nas barbearias, nas tabernas mais concorridas, e não raro junto à escadaria da senhora da Boa-Nova, nos serões de sábados, já com a magra “féria” na algibeira, nas noites cálidas de verão, onde os assalariados braçais da área se juntavam à meiguice tradicional dum garrafão cheio de ilusões...
Há indícios (que não interessa agora revisitar) que conduzem à proximidade do facínora denunciante da época: alcoviteiro malino que trabalhava como cobrador da luz da empresa Cordeiro. O que interessa agora recordar através do alfabeto da memória, é a natureza do interrogatório a que Carlos foi sujeito, à porta-fechada, como aliás recomendavam os preceitos do caciquismo politico da época.
E assim foi. O “patrasana” tenente Romão desconhecia a verruga da vergonha na cara, porque era enfermo incurável da cobardia. A sua fragilidade estava sempre protegida por seis guardas de polícia, gente quase analfabeta mas feliz por não serem cavadores da terra dos outros. Os guardas estavam estrategicamente colocados nas imediações do seu faustoso gabinete, instalado na zona adjacente leste ao palácio da Conceicão.
Naquele tempo, os policias (e a própria opinião pública) já conheciam o método preferido do asqueroso tenente Romão: humilhar a vítima até à “raiz da alma”; para além do limite da dignidade varonil das suas vitimas. Porém, há sempre as excepções: para espanto dos guardas, o interrogatório do sindicalista Carlos Ferreira foi, como sói dizer-se, festa de pouca dura...
Mas.. afinal, que terá então acontecido de especial durante aquele crudelissimo interrogatório?
Não seria difícil por a imaginação em órbita acelerada. Vamos com calma. Sabia-se que o tenente Magro Romão costumava disfarçar a sua pequenez física colocando-se atrás duma enorme secretária de pinho resinoso, onde pontificavam um imponente “mata-borrão” e dois tinteiros, respectivamente repletos de tinta preta e vermelha; havia ainda a inseparável campainha de alarme, que mais parecia a sineta fúnebre da quaresmal “procissão dos terceiros”. O cenário geral do gabinete ostentava com o pano de fundo uma moldura episcopal com o perfil oficial da ditadura: Salazar!
Tudo isto é referido para lembrar que, até à data, ninguém conseguiu saber ao certo o que se terá passado no interior daquele sinistro gabinete.
O que se sabe é que, num dado momento do interrogatório, a porta do gabinete foi aberta, abruptamente: num ápice, os guardas viram o pequerrucho tenente Romão a correr estavanado, com o rosto e a farda salpicados de tinta vermelha (ou talvez sangue?!). O homem ia louco, e berrava, e berrava histericamente, aos seus subordinados:
- … prendem este malandro! Acabem depressa com este malandro!
Naquela tarde, devido àquele gesto temperamental a sós com o famigerado comandante (sabemo-lo hoje), Carlos Ferreira assinara a própria sentença de morte!
Não se conhece ao certo os pormenores tácticos usados pelo intendente Romão. Sabemos apenas o que foi testemunhado das pessoas que foram inocentememte apanhadas pelo evento. Carlos Ferreira foi amarrado para ser disciplindamente agredido pela meia dúzia de policias de serviço, todos micaelenses: na circunstância, havia alguma urgência para provar serviço bem feito. Naquele mesmo dia, o estufeiro-sindicalista foi admitido nas urgências do hospital de Ponta Delgada, com múltiplos ferimentos e fracturas no crâneo. Apresentava basta evidência de ter sido agredido, impiedosamente, por agentes mais apavorados do que justiceiros...
Entretanto, perante alguns gestos isolados de tímida valentia, mas sinais de repúdio pelo sucedido, vindos da parte de pequenos grupos de camponeses de São Roque e de estufeiros da Fajã de Baixo, o tenente Romão resolveu cortar o mal pela raiz: Carlos Ferreira foi simplesmente “despachado” para a ilha Terceira, com toda a papelada preenchida, atestando a sua suposta qualidade de agente subversivo do comunismo euro-americano...
Ainda hoje muito pouco se conhece àcerca do seu estado mental, ao desembarcar na ilha Terceira, em trânsito para o depósito prisional da histórica fortaleza de S. João Baptista. Sabe-se apenas que viajou amarrado, instalado no porão destinado ao gado em trânsito (os burocratas policiais da época não cultivavam o zelo de averbar o diagnóstico então detectado e conferido, relativamente às enfermidades fisicas e psicológicas dos malogrados detidos.)
Em carta datada de 17 de Março de 1937, a direcção da Casa de Saúde de São Rafael, Angra do Heroísmo, os pais de Carlos Ferreira (na altura com 33 anos) eram informados do seguinte:
“ (…/... )
... o seu filho Carlos deu entrada nesta Casa de Saúde no dia 3 de Março, vindo do Depósito de Presos da Fortaleza de S. João Baptista, desta cidade de Angra.
O seu pobre filho (sic) veio muito mal, agitado, furioso, agressivo…
Recusa-se a tomar qualquer alimento…
Enfim, que Deus o melhore, senão assim não poderá durar muito tempo…
Sem outro assunto,
José Gonçalves Nogueira, Director”

Alguns meses mais tarde, outra carta, datada de 18 de Agosto de 1937, oriunda da mesma fonte, e dirigida aos meus avós, rezava o seguinte:

“ ( … /...)
… o cadáver do seu infeliz filho foi sepultado no dia 31 de Julho passado, no cemitério de Nossa Senhora da Conceição, desta cidade de Angra do Heroísmo.
Desejo a V.Exa. muita saúde e a graça de Deus…
Damião de Sousa, Director”

----//----//----

P.S.


(*) Já lá vão cerca de sete décadas! … falta-nos ainda obter confirmação inequívoca da veracidade da notícia, segundo a qual o poeta-advogado Oliveira San-Bento (que mais tarde acabaria oscilando para as margens do Estado Novo) terá sido o único advogado micaelense que na época teve a coragem de se manifestar cívica e profissionalmente insultado pelas ilegalidades, prepotências e arbitrariedades praticadas pelo asqueroso tenente Magro Romão…
Anos mais tarde, durante a II Guerra Mundial, o subalterno Romao foi obrigado a servir o fascismo em terras de Angola; consta que naquele tempo (1941-45) foi comprovadamente surpreendido com “o pé na poça”, como autor de irregularidades financeiras...

Maio, 2009
Rancho Mirage, California
Autor: João-Luís de Medeiros

Fonte: Correio dos Açores, 17 Maio 2009

terça-feira, 9 de junho de 2009

"Diego", dicho Abel Paz




Hay que leer la prensa extranjera – francesa, inglesa –, para percatarse de que la España de Zapatero es mejor comprendida y a menudo mejor evaluada fuera que dentro de España. Esto se aplica a todos los avances sociales realizados o en curso de realización. Y en ninguna parte la crisis económica mundial está tan denostada y salvajemente imputada al gobierno local como aquí. Es verdad y necesario señalar que las increíbles carencias de comunicación, la falta de carisma, de calor, para no hablar de entusiasmo, de los servicios de comunicación del Gobierno no son la mejor ayuda para que los ciudadanos, sea directa o indirectamente, se interesen o se dejen convencer por las reformas en curso. El propio juez Baltasar Garzón es infinitamente más apreciado, admirado y hasta querido en el extranjero que en su propio país.

Es leyendo el diario francés Libération como uno recibe la primera noticia de la muerte, en Barcelona, el pasado 13 de abril, de Abel Paz, anarquista de vida ejemplar, altos ideales y valía moral.

No son pocos los turistas medianamente preparados pero conocedores de la historia de España y enamorados de la lucha de Cataluña contra el alzamiento franquista, que se sorprenden de que no haya en Barcelona una Plaza de Buenaventura Durruti ni un Paseo de los Hermanos Ascaso. O por lo menos una placa con sus nombres, escondida en algún rincón de la ciudad. Es la eterna historia, la del rechazo visceral del anarquismo, ese “espantaburgueses” que aterroriza a los mejor dispuestos a rendirse al comunismo más implacable antes que reconocer valor alguno, así sólo fuera simbólico, al anarquismo.

Falleció Abel Paz a los 88 años de edad. Su nombre verdadero era Diego Camacho, escritor, historiador, autodidacta y militante anarquista toda su vida. Dejó unos diez libros publicados, entre los cuales una biografía de Durruti traducida a catorce idiomas. En París, el 29 de mayo, se presentó un documental de Frédéric Goldbronn titulado Diego, en un acto de homenaje en presencia de simpatizantes y amigos que lo conocieron bien.

“Bastan a veces tres segundos para dar sentido a una vida, y en este caso fueron casi tres días los que me marcaron para siempre, como marcaron a cientos de miles de personas”, decía Paz en una entrevista recordando cómo, el 19 de julio por la mañana, cuando Goded sacó a las tropas de los cuarteles de Pedralbes, se encontró ante él, enfrentándolo, a un millar de anarcosindicalistas casi sin armas, decididos a defender la ciudad del fascismo. Ese mismo día, Francisco Ascaso perdía la vida en el ataque a un cuartel.

Demasiado joven, Paz no irá al frente de Aragón. Se quedará para “construir el futuro” inventando nuevas formas de vida. “Tenemos que construir sobre bases nuevas.” escribe Paz en su biografía de Durruti. “La solidaridad entre los hombres es el mejor incentivo para despertar la responsabilidad individual… Es preciso que el hombre aprenda a vivir y conducirse como un hombre libre… como dueño de sus propios actos. En la lucha no se puede comportar como un soldado al que le mandan, sino como un hombre consciente de que conoce la trascendencia de sus actos.” Es la Barcelona de Orwell, en donde “prevalecía un estado de cosas que enseguida me pareció merecer la pena de luchar por él”.

La vieja historia del fin y los medios. “La anarquía ha situado muy alto la idea de que el fin no justifica los medios. Para la anarquía más que para el comunismo, una sociedad nueva se construye desde el primer instante, y no utilizando cualquier medio”, dice Abel Paz. Pero ¿quién podría afirmar que estos preceptos éticos no valen también hoy, contra el terrorismo moral involucionista de las iglesias, o el código ético de los políticos, juristas y torturadores de Guantánamo?

Se conoce como termina: con la toma del control por parte de los estalinistas se desmontan las cooperativas de Barcelona, las colectividades campesinas de Aragón, se liquida el POUM, se persigue a los anarquistas y es la derrota final. Paz se exilia en Francia, donde pasará por los campos de concentración y el trabajo forzado bajo el régimen de Vichy. Después, el regreso a España y la cárcel, de la que saldrá en 1953 para exiliarse de nuevo en Toulouse hasta 1977.

Uno de los componentes más conmovedores del anarquismo español es, sin dudas, su interés, su auténtica bulimia cultural. “El gran sueño de Durruti y Ascaso era fundar editoriales anarquistas en todas las grandes capitales del mundo. La casa matriz habría estado en París. Con tal propósito se fundó la Biblioteca Internacional Anarquista”, escribe Cánovas Cervantes (citado por Enzensberger). “Durruti colaboró con medio millón de francos para el mantenimiento de la Librairie Internationale”, afirma Alejandro Gilabert. Pero cuando “después de la proclamación de la República, los anarquistas quisieron trasladar la sede de la editorial a Barcelona… en la aduana francesa de Port-Bou los gendarmes franceses prendieron fuego a todo el material”.

“Me pregunto cómo se puede vivir sin libros. Cómo se puede reflexionar sin devorar libros, novelas, estudios, libros de historia o de filosofía. Todo vale”, escribe Abel Paz. “Ser anarquista es ser una persona coherente… Trabajar lo menos posible, lo suficiente para poder vivir, disfrutar de la belleza, del sol. Disfrutar de la vida con mayúsculas es un estado mental, una actitud ante la vida. Trata de vivir esta utopía un poco cada día.”

Pues eso
Nicole Muchnik es periodista y pintora